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Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira

Atualizado: 7 de jul. de 2020

Caros leitores, Embora pareça muito natural, espontânea, a escrita de uma carta conservou, durante seu ciclo de existência, técnicas apuradas de expressão e presentificação dos sujeitos envolvidos no diálogo epistolar. Pelos recursos da carta, as distâncias diminuíam, a afetividade podia se fazer presente, os estados emocionais eram elaborados por meio da imaginação de um outro que nos escutaria. A carta, como a conhecíamos, terminou seu ciclo com a disseminação dos meios eletrônicos de comunicação escrita. Contudo, em pleno século XXI, a carta retorna com uma função específica: materializar, pela voltagem afetiva e emocional do gênero, a proximidade entre sujeitos que, por diversas circunstâncias, não podem estar fisicamente presentes um para o outro. A carta une, fabricando uma cumplicidade que pretende compensar a ausência física. A carta parece nos lembrar dos recursos muito especiais da linguagem para converter a ausência em presença. Durante os afastamentos e distanciamentos físicos voluntários e involuntários, a carta cumpre seu papel de acolher, aproximar, sensibilizar, fazer companhia, trazer amigos, parentes, colegas para junto de nós. A aposta na carta como boa companhia faz parte da proposta desse blog: que todos se sintam convidados para escrever a alguém. Escrever uma carta a alguém é dar-se de presente a alguém, tornar-se presente, fazer companhia, é também comunicar a si mesmo aquilo que não falaríamos se não contássemos com a possibilidade de um destinatário à escuta. O blog vai receber e publicar cartas da quarentena estabelecida durante a pandemia de coronavírus (o vírus SARS-CoV 2) e da propagação da doença associada a ela, a Covid-19. Vamos, ainda, postar cartas de artistas e textos sobre a correspondência. Nesses tempos de quarentena, o blog deseja acolher e incentivar a escrita de cartas, entendendo o duplo gesto da correspondência: o diálogo com o outro é o diálogo consigo mesmo que às vezes precisamos ter. Grupo Cartas Literárias – Projeto de Pesquisa “Conhecimento do Mundo” (UNIRIO)

Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira A carta de um escritor une a vida à literatura. Para nós, leitores, a carta do escritor nos aproxima do cotidiano do artista, suas alegrias pequenas, suas tristezas do dia a dia, enfim, a carta, enviada a um remetente específico, chega até nós para evidenciar a dimensão humana de artistas e intelectuais. O crítico Antonio Candido disse de Mário de Andrade: “A sua correspondência encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua obra e do seu espírito.” Postamos aqui uma pequena mostra desse monumento. [São Paulo, post. 3 de janeiro de 1925] Manuel, Aproveito uma estiada do abatimento e escrevo pra você. Não imagina o calorão que tem feito aqui. Direitinho como no Rio e em Santos. Nunca São Paulo teve assim um calor organizado, maciço, de dia e noite sem parar. Uma coisa horrorosa. Eu não posso mais. Não como, não durmo e não faço nada. Nem ler. Estou completamente abatido, magro, lânguido. Tem noites em que me dá vontade de gritar, berrar, não sei, fico numa irritação que só vendo. Me parece impossível que causas só materiais influam tanto assim sobre o moral da gente. Porque não tenho nenhum sofrimento moral agora. Pelo contrário: ando satisfeito com os outros, satisfeito com tudo, me divirto bastante, todos parecem gostar de mim, o dinheiro afinal dá pra pagar a edição de Escrava [A escrava que não é Isaura]. É só mesmo o calor que me deixa assim irritado ou abatido. Ainda prefiro o abatimento, embora a irritação me dê mais fortemente a sensação de que ainda estou vivo e sou. (...) Mário (Trecho de carta extraído do livro Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, organizado por Marco Antonio de Moraes, São Paulo, EdUSP, 2000, p. 176)

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